Sandro Mesquita
Que rufem os tambores
Sandro Mesquita
Coordenador da Central Única das Favelas (Cufa) Pelotas e Extremo Sul
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Virada do milênio ano de 2000 e todos de certa forma preocupados com os acontecimentos proféticos para o período. Havia anúncios de fim do mundo, da era, dos tempos, ainda com o agravante do tal "bug do milênio" que colocaria todo o sistema digital em pane, causando grande caos nas redes de informática. Felizmente isso não aconteceu, aquela apreensão do momento passou e tudo o que as pessoas haviam programado pra desenvolver, seus desejos pessoais, sonhos, projetos, puderam dar continuidade e realizar.
Inclusive, nesse ano, tivemos as duas edições da Festa dos tambores, o Cabobu, festival que nasceu com o intuito de resgatar a cultura negra no Estado e o instrumento de percussão sopapo, que é considerado como criação autêntica da Zona Sul. A primeira edição aconteceu em fevereiro e a segunda em dezembro de 2000, colocando a militância, atores, agentes e simpatizantes da cultura negra em articulação e construção, presenteando assim a sociedade pelotense com uma atividade que se propunha não somente ao debate, que é extremamente importante, mas sim a mostrar a cara e a diversidade da cultura, colocando a cidade de Pelotas na frente do espelho.
Pois o festival está de volta! E isso tem, sim, um grande significado. Estamos nacionalmente vendo situações de racismo acontecerem à luz do dia sem nenhum constrangimento e de diversas formas, em muitas vezes com agressões físicas, verbais, psicológicas, pessoas sendo encontrados "trabalhando" em condições análogas à escravidão, sofrendo todo tipo de maus-tratos, sem alimentação, higiene, água!
Estamos em um debate político de 20 anos da Lei 10.639, que dá conta do ensino da cultura negra e africana nas escolas, onde sai uma estatística que nem 70% das escolas executa, e dez anos da implementação das cotas nas universidades, que foi prorrogada, pois não causou ainda o impacto esperado.
Pelotas, com o histórico de ter sido construída através da cultura do charque produzido por mãos negras, assim como o sopapo, foi a última cidade a abolir a escravidão, com o título de cidade mais negra do Estado e alguns dizem ser a segunda do Brasil em percentual de negros. Então, Pelotas ganha de presente com o festival mais uma oportunidade de reescrever sua história a partir desse evento.
A oportunidade de sentar no divã e fazer sua sessão de terapia ao som do Sopapo contemporâneo e, como eu falei, parar em frente ao espelho, enxergar sua Pele negra sem as máscaras brancas, Descobri[r] que tem raça negra aqui e que somos Iguais por direito, que para essa Negrada não mais valerá A política da morte e nem A negra forca da Princesa, pois Raiou a Alvorada e abrimos o arquivo negro para mostrar as provas que forem preciso para nos fazermos entender.
Regate histórico, ancestralidade, afirmações de políticas culturais e de outros setores diretamente ligados à comunidade negra de todo Estado, isso é um pouco do Cabobu. Para além da festa e do rufar dos tambores, percussões e precursores, dos corpos que dançavam e dançam com seu gingado na capoeira, na dança afro, se esquivando dos ataques racistas diários, dos jovens tecendo suas críticas, suas crônicas rebatendo o status quo, em cada barracão, em cada alegoria, fantasia ou carro alegórico temos um movimento que traz em cada ação o resgate.
Ressignificar toda história, ora mal contada, ora distorcida, ora invisibilizada, e reescrevê-la com nossa oralidade, com os nossos tambores, com nossas mãos negras.
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